quinta-feira, junho 29, 2006

Com um nó na garganta

Era apenas uma notícia. Um grupo de antigos presos da PIDE na cadeia do Aljube vão defender, no sábado, que aquela prisão seja transformada num museu da resistência à ditadura.
Depois, comecei a reunir números de telefone e, do outro lado, ouvia as descrições, as memórias de quem conheceu o Aljube, Caxias, Peniche e o Tarrafal. De quem foi torturado na António Maria Cardoso, três noites sem dormir. Relatos dos espancamentos, da memória que é a única companheira, da felicidade de ver os pombos a construir um ninho, ou vislumbrar a rosácea de pedra da Sé.
Ouvi-os, com um nó na garganta.

Lisboa/Aljube: Memórias de quem passou pela "mais sinistra prisão do fascismo"


Por Joana Haderer, jornalista da Agência Lusa

Lisboa, 29 Jun (Lusa) - António Borges Coelho, historiador e antigo preso político no Aljube recorda que passava o tempo a organizar imaginários jogos de futebol: "A perna esquerda era o Sporting, a direita o Benfica".
"Tinha um botão no chão e jogava, mas quase não podia mexer as pernas", descreveu à Lusa o historiador e membro do movimento cívico "Não Apaguem a Memória!" que quer transformar a antiga prisão do Aljube num museu da resistência ao fascismo.
Na cadeia do Aljube, perto da Sé, onde agora funciona o Instituto de Reinserção Social, permaneciam os presos políticos que estavam a ser interrogados na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso.
Encarcerado em 1956 durante seis meses nos "curros", que descreve como celas do comprimento do seu corpo e da largura do tronco "mais um braço estendido", Borges Coelho, então com 26 anos, entretinha-se os seus imaginários jogos de futebol.
O antigo preso político lembra as "mantas horrorosas, que não eram lavadas" e que "guardavam vestígios de esperma de vários presos, que se foram acumulando".
"No isolamento, o tempo escoa-se e nós vivemos unicamente da memória, que atinge níveis completamente incríveis", diz.
Acusado de pertencer ao PCP, "o que por acaso até era verdade", Borges Coelho não chegaria aos seis meses de isolamento, já que o seu débil estado de saúde, depois de recusar a "comida quase podre, intragável", obrigaria a um internamento na enfermaria da cadeia.
No meio das "piores recordações" que tem do Aljube, Carlos Brito, antigo dirigente do Partido Comunista Português e actual membro do movimento Renovação Comunista, guarda uma memória "muito positiva":
a do dia 25 de Maio de 1957, em que conseguiu fugir da cadeia, acompanhado por outros dois companheiros.
Depois de serradas as grades, os presos percorreram um algeroz "muito estreito" no último andar do edifício, "com grande dificuldade de equilíbrio", desceram a pulso um vão de seis metros por uma corda de lençóis, caminharam sobre dois telhados, saltaram as águas-furtadas e atingiram o chão com uma escada ali colocada.
"É a cadeia que simboliza a repressão da ditadura de uma maneira mais evidente e mais gritante. Por isso senti tanta alegria quando consegui fugir", descreveu à Lusa.
Naquele lugar, que recorda como a cadeia "mais sinistra", Carlos Brito esteve em três ocasiões distintas, entre 1957 e 1959, a maior parte do tempo "incomunicável e em isolamento".
Numa das vezes, após ter sido espancado, ficou durante dias "sem colchão nem cobertores nem qualquer espécie de agasalho, em cima de um bailique (tarimba) de madeira". "Ali se passaram dos momentos mais lancinantes. Lembro-me de ver companheiros que não conseguiram resistir e estavam ali à beira do suicídio", conta.
O historiador José Manuel Tengarrinha observou uma dessas situações: quando, em 1961, regressou de um interrogatório na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, encontrou as manchas de sangue do seu companheiro de cela, que se suicidara cortando as veias.
Tengarrinha sublinha que o Aljube era "a pior prisão do fascismo", onde permaneciam "em condições indescritíveis" os presos políticos que se encontravam em fase de interrogatório.
"Era duríssimo", garante.
"As condições eram concebidas de propósito para desmoralizar os presos", afirma, lembrando a "angústia" que sentia quando ouvia a carrinha da PIDE a chegar, sem saber se seria o próximo a ser levado para "a António Maria Cardoso".
Nos "curros" durante um mês e meio, Tengarrinha, então com 30 anos, passava a tempo a fazer peças de damas com miolo de pão, que usava para jogar sozinho.
"Houve uma barata que entrou na cela. Conservei-a como uma amiga, uma companheira, o único ser vivo que estava ali comigo", conta.
A única vez que fumou foi durante o isolamento no Aljube, durante cerca de um mês, recorda o socialista José Medeiros Ferreira.
"Não podia ler, não podia sair da cela. Tinha uma grande variação: fumava às 09:00, às 10:00, às 11:00, às 12:00 e, no dia seguinte, às 09:30, às 10:30, às 11:30", descreve com alguma ironia.
O antigo ministro do PS esteve três meses no Aljube, entre 1962 e 1963, acusado de realizar "actividades subversivas contra a segurança do Estado".
O antigo preso afirma que "a maior violência do isolamento é em termos psicológicos", por não haver nada para fazer.
Naquele período, a sua única companhia eram as vozes de "uma menina que cantava canções populares e a de um preso que cantava o 'Menina Estás à Janela'".
Mais tarde, na sala comum, Medeiros Ferreira e os companheiros "iam ao cinema" todas as noites, com cada preso a relatar aos outros um filme que tivesse visto.
Na primeira vez que foi preso no Aljube, em 1934, Edmundo Pedro tinha apenas 15 anos e chegou a partilhar uma cela com o seu pai. Voltaria àquela prisão mais duas vezes, a última já com 43 anos, após o assalto ao quartel de Beja, uma tentativa de golpe falhada ocorrida em 1961.
Edmundo Pedro, hoje com 87 anos, atribui à "determinação, à auto-confiança e à imaginação" a força para suportar o isolamento: recordava os livros que tinha lido, fazia cálculos matemáticos.
Através de uma abertura de um dos "curros" onde permaneceu, conseguia ver a Sé, onde observava os pombos a fazer os ninhos, as pombas a ter os ovos, os borrachos a nascer.
Mais tarde, foi levado para outro "cubículo", ao lado do qual estava um companheiro com quem jogava damas, apesar da parede que os dividia.
"Riscávamos a tabela do xadrez no chão e depois, com um código de batidas na parede, fazíamos um jogo", afirma.
Apesar da dureza da cadeia, Edmundo Pedro acredita que "não há heróis".
"Perante as situações, as pessoas não têm outro remédio senão adaptar-se. Por duas ou três vezes ouvi pessoas a berrar, devem ter enlouquecido. Mas a maior parte das pessoas acaba por resistir".

JH.
Lusa/Fim

1 comentário:

mak disse...

Simplesmente brilhamte, Lois Lane...
Beijos gds